Atados conversa com a pedagoga, congadeira e professora universitária Tatiane Souza
Ainda que as discussões sobre questões raciais se intensifiquem em novembro, Mês da Consciência Negra, as pautas devem ser debatidas ao longo de todo ano, sobretudo nos ambientes escolares, acadêmicos e de trabalho. Ainda que negros sejam a maioria no ensino superior público, a representatividade em cargos de liderança continua muito pequena. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2018, apenas 29,9% dos cargos gerenciais são ocupados por pessoas pretas ou pardas.
Para falar sobre o racismo na educação e no mercado de trabalho, conversamos com Tatiane Souza, pedagoga, congadeira e professora universitária e de ensino básico, além de ser fundadora e coordenadora do AKOMA- Grupo de Estudos e Pesquisas em Africanidades, Culturas, Diversidades & Memórias e idealizadora do AfroEducar, que promove o conhecimento das relações étnico-raciais e da história e culturas africana e afro-brasileira.
Atados: O que é e o que representa o Dia da Consciência Negra?
Tatiane Souza: O Dia da Consciência Negra representa uma grande celebração. Uma celebração de luta, resistência e existência da população negra. A história da população negra no Brasil foi, desde o início, marcada por muitas violências, dores e negação de direitos. 20 de novembro é, então, resultado de uma série de lutas desde o momento em que nossos antepassados africanos pisaram aqui.
É também um marco para celebrar os nossos heróis, as pessoas que mudaram a história do país e lutaram pelos seus direitos. Obviamente, a gente eterniza algumas figuras. A gente sempre tem algum referente. Mas, na verdade, a gente tá falando de todos nós que estamos no dia a dia lutando para ser quem nós somos, tendo orgulho, mas em muitos momentos enfrentando resistência das pessoas por não aceitarem quem nós somos, como somos, como fazemos, como pensamos, como sentimos.
A: O professor Silvio Almeida afirma que o racismo deve ser compreendido não como um fenômeno individual, mas conjuntural. Tendo isso em vista, qual a sua visão sobre o racismo estrutural e como isso se relaciona com a inserção da população negra no mercado de trabalho?
TS: Pensar em racismo estrutural é pensar em como as instituições e as pessoas, dentro de uma sociedade, se constroem. A gente tá falando de um processo educativo que foi construído ao longo do tempo. Então não é só uma questão de intelecto e de ideias. É também de comportamentos, emoções e sentimentos.
Nesse sentido, o racismo estrutural atravessa todas as dimensões da sociedade e toda a nossa estrutura enquanto ser humano. Então, a ausência de pessoas negras, a ausência do debate e sobretudo a ausência do incômodo da ausência das pessoas negras é algo para gente questionar o quanto esse processo foi meticulosamente arquitetado e foi naturalizado.
Eu costumo dizer que no Brasil você tem dois abismos sociais: um equivale ao mundo dos brancos e outro ao mundo dos não brancos (que inclui as populações negras e indígenas). São mundos completamente diferentes. Para falar de negritude, a gente precisa pensar sobre a identidade branca, a branquitude. A gente precisa pensar como é que esse corpo branco é visto na sociedade brasileira. E como esse corpo tem acesso aos bens culturais, aos bens materiais, aos serviços e sobretudo aos direitos constituídos pela sociedade. Cabe pensar: quais privilégios o meu corpo conduz ou condiz? Ou quais privilégios são atribuídos ao meu corpo pelo fato de ele ter um fenótipo X?
Pensar no racismo estrutural, nesse sentido, é pensar na condição de vida que é atribuída ao meu corpo. É pensar nas influências da ciência na construção de lugar de prioridade da população negra. Ao mesmo tempo, na construção do lugar de superioridade. Hoje nós sabemos que essas são crenças superadas lá do século 18, mas ainda povoam o imaginário social. E quais são os desdobramentos das práticas dessas crenças?
A: Em 1964, o ativista Martin Luther King introduziu o termo tokenismo no seu livro Por que não podemos esperar. O que é o tokenismo e por que ele é tão prejudicial ao movimento negro?
TS: Se for tokenismo no sentido de que a pessoa negra é utilizada com um interesse específico das pessoas racistas, ele é prejudicial porque esvazia todo o conteúdo político e identitário daquilo que nós somos, sobre a nossa cultura, a nossa visão de mundo. É como se você pegasse apenas um corpo negro para manifestar um interesse que não é da população negra.
Isso nós estamos vendo, por exemplo, na Fundação Zumbi dos Palmares, em Brasília. [O presidente] é uma figura negra, mas totalmente esvaziada do conteúdo político do que significa ser negro diante de toda luta dos ancestrais africanos e da luta que os movimentos sociais — principalmente o movimento negro — têm construído. Nesse sentido, não basta ter um corpo negro. Eu preciso estar constantemente me fortalecendo a partir do que significa ser negro.
Existem duas perspectivas. Uma que foi forjada pelos europeus, pelo racismo, pelas pessoas brancas. Outra é uma visão do que é ser negro a partir das culturas de raízes africanas, a partir daquilo que os povos negros determinam para si. Não ser alvo desse uso é estar atento de que você e sua identidade política correspondem a um projeto de nação que você acha adequado para sua população.
A gente vê muito, no Brasil, gente que diz “eu até tenho um marido negro”, “eu até tenho um amigo negro”, se valendo disso e tornando da vítima o seu próprio algoz. Uma pessoa usada nesse sentido é vítima de uma educação racista. E todo mundo que tem acesso a uma educação antirracista e a uma psiquê saudável jamais irá contra seu próprio povo. O auto-ódio faz parte de uma das dimensões psicológicas do racismo.
A: Em que medida os processos seletivos e os critérios de seleção de uma empresa podem ser responsáveis pela manutenção da desigualdade racial não só no mercado de trabalho, mas na própria sociedade?
TS: Na medida em que desconsidera todo o fenótipo do corpo negro. Empresas precisam entender que o ser humano faz parte de uma diversidade magnífica. Há quanto tempo a gente luta para que as pessoas não vejam negros como todos iguais? Porque não somos todos iguais. A melanina nos unifica, mas nós temos diversidade também entre nós. Ao mesmo tempo, a empresa precisa entender que a nossa diversidade corresponde a uma diversidade humana e que ela precisa acolher.
O que temos visto historicamente é que as empresas pedem para o funcionário ou funcionária cortar o cabelo, alisar o cabelo. Ou seja, o mercado de trabalho responde a um tipo ideal de humanidade. As ideias racistas do século 18 ainda povoam as práticas. Se a pessoa tem um cabelo crespo, para que ela vai ter que alisar e entrar num padrão que não é dela? Ou pessoas que foram impedidas de usar o turbante porque não era apropriado àquela visão?
As empresas precisam entender que há uma diversidade e essa diversidade pode trazer muitos benefícios. Além disso, preciso formar a sua equipe para entender essa questão. Para entender o quanto é violento. Mais do que isso, é criminoso. Porque você está discriminando alguém pela cultura a que ela pertence e pelo fenótipo, pelo corpo que ela traz.
Cada vez mais a gente tem visto empresas se capacitando para entender qual posicionamento o RH tem que ter e a cultura da empresa tem que ter diante daquele funcionário. Eu penso que mudando a mentalidade de como se vê a população e como se trata a população negra dentro do ambiente corporativo, essas ações também vão sendo modificadas.
A: Você fazia parte da maior consultoria de RH focada em diversidade étnico-racial do país, a EmpregueAfro. Com base na sua experiência, como a classe empresarial pode, efetivamente, combater essa desigualdade e o racismo no mercado de trabalho?
TS: Meu trabalho na EmpregueAfro era basicamente mudar a mentalidade das pessoas para que o comportamento delas pudesse ser diferente. É um processo educativo mesmo. A população brasileira, de fato, não tem acesso ao que significa ser negro, sobre a identidade negra, sobre a cultura, e às vezes reduz a cultura negra ao racismo. O racismo não faz parte da cultura negra. Racismo é uma consequência do mundo ocidental que afeta as pessoas negras.
Por isso, eu sempre falo de resistência e existência. A resistência nos leva a combater o racismo porque não faz parte da nossa cultura e afeta a nossa humanidade. E a existência é a dimensão que traz toda a nossa cultura para pensar o nosso dia a dia. São filosofias, modos de vida.
O que eu acho interessante que as empresas, as escolas passem a saber? Primeiro, ter uma perspectiva antirracista. Para isso eu preciso entender o que foi o processo de escravização no Brasil e o que estão sendo os processos de racismos no mundo. Como a população negra tem sido vista e como essa população negra foi marginalizada e construída a partir de uma representação social totalmente deturpada e estigmatizada por parte dos europeus.
O ponto é entender como, diante de tanta adversidade, essa população negra se posicionou a tantas outras coisas independentemente do nosso pertencimento étnico-racia. Uma coisa é a resistência. Outra coisa é a existência, aquilo que é a minha cultura, que comunica, me forma, me imuniza, porque a cultura é um sistema imunológico. De onde eu tiro tanta força para, mesmo diante de um contexto de caos, sobreviver? Como as empresas se apropriam disso? De fato, entendendo o contexto das relações étnico-raciais, a história da cultura negra.
A: Para finalizar: enquanto pedagoga e educadora, de que forma você acha que a educação pode contribuir para a luta antirracista?
TS: A educação contribui de duas maneiras. Primeiro, fazendo um processo de localizar esses problemas, descolonizar as visões daquilo que foi enraizado, naturalizado e, depois, trazendo outras referências para que as pessoas possam substituir as velhas crenças. Eu tenho um projeto que se chama AfroEducar, em que a gente faz esses dois movimentos: como é que eu trabalho com uma educação antirracista, combatendo o racismo, olhando para as discriminações raciais e localizando como é que isso se dá nesse território, nas relações entre as pessoas; depois trazendo outros elementos da cultura para pensar sua humanidade, sua identidade, seus gostos e várias dimensões da arte de um outro lugar.
O continente africano tem mais de 54 países, então tem muita coisa para gente se instruir. E em todo o momento você está se educando. A presença de algo ou a ausência de algo é educação. A partir do momento que acontece uma piadinha com um colega no mundo corporativo, e a chefia ou o responsável por aquele setor não se pronuncia, então está reforçando que tudo bem discriminar, que tudo bem fazer piadinha. O mesmo ocorre no ambiente escolar. Isso, por si só, é um processo educativo. A gente pode reforçar algo e transformar aquilo como natural ou se posicionar e dizer “isso não é legal”, “isso não é aceitável”, “isso é crime”.
A gente tem no imaginário a educação como coisa benéfica, como uma entidade. Mas, na verdade, a educação tem sido um instrumento para manter as relações de poder como estão, manter uma certa dominação e, em relação à população negra, a educação tem sido uma arma para transformar a realidade opressora. E quando você olha para história desse país, a educação foi sempre um campo de disputa, pois ao final desse processo você tem a formação de um ser humano, de uma mentalidade de uma geração inteira.
A pergunta que a gente sempre faz é: que tipo de educação eu quero? Quando você olha para o cenário nacional, você vai perceber uma quantidade expressiva de casos de violência, homicídio e discriminação contra a população negra. Isso é fruto de um processo educativo racista. Que desumanizou a população negra e super-humanizou a população branca. Nesse sentido, não é um campo ingênuo. É um campo constante de disputa.
Imagem em destaque: acervo pessoal
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Christian Domingues
Voluntário de Comunicação
Edição: Aline Naomi
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