Entre os dias 27 e 31 de julho deste ano acontece a Campanha Coração Azul, contra o Tráfico de Pessoas, que contará com a mobilização, em todo o Brasil, de redes de apoio, postos de atendimento, diversos órgãos públicos e organizações não-governamentais. A campanha, que articula vários países para chamar atenção para questão do tráfico de pessoas, foi lançada em 2013 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC).

Este não é o tipo de tema de direitos humanos que inspira grandes mobilizações, não há um conhecido marco a ser conquistado a não ser o constante enfrentamento de sua prática (legalizar o comércio de pessoas definitivamente não é uma alternativa). Ocorrendo às sombras da sociedade, é um problema difícil de mapear e pouco se sabe, menos ainda é dito, sobre o que enfrenta uma pessoa que foi tirada de sua comunidade para sofrer toda a sorte de exploração. Ainda assim, o tráfico de pessoas está, não tenho medo de dizer, entre uma as mais graves formas de violação de direitos humanos.

De uma só leva, a vítima enfrenta inúmeras formas de desrespeito aos seus direitos mais fundamentais, a começar pelo de ir e vir, e passando pelo direito a um trabalho digno, à intimidade, à decisão sobre seu próprio corpo, à integridade física, quando não à própria vida. Não é difícil imaginar como o seu combate se torna cada vez mais difícil e complexo com o avanço da globalização, com pessoas sendo levadas a distâncias cada vez mais longas, na maior parte das vezes saindo de uma situação prévia de vulnerabilidade e buscando sonhos alimentados por propostas ilusórias, para sofrerem exploração no lugar de destino.

Como as estatísticas sobre o tráfico de pessoas são feitas com base nos dados obtidos em casos revelados pelo combate à prática, feita por órgãos nacionais, a situação real é provavelmente muito pior daquela que os relatórios apontam (que já é desanimadora). Segundo o Relatório de 2014 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, de 2010 a 2012 são 152 diferentes nacionalidades que foram envolvidas no tráfico de pessoas, em 124 países do mundo (para os desavisados, o mundo tem 193 países oficialmente reconhecidos pela ONU), e foram identificados 510 fluxos de tráfico de pessoas. A cada dez vítimas, seis foram traficadas atravessando pelo menos uma fronteira internacional. Ou seja, não há dúvidas de que é um tema de relevância mundial.

O relatório também levanta os tipos de exploração que sofrem as vítimas traficadas. A maior parte dos casos continua sendo a exploração sexual, embora tenha crescido significativamente o tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho (cresceu de 32% das pessoas traficadas em 2007 para 40% em 2011). Em 2011, essas duas formas de exploração somavam 93% do total mundial. O perfil das vítimas também não é nada para dormir tranquilo: do total de pessoas traficadas, 49% são mulheres adultas, enquanto um terço são crianças, sendo 12% meninos e 21% meninas. E piora: o relatório aponta uma tendência de aumento das crianças traficadas no mundo.

Ótimo. Traficar pessoas é horrível, nenhuma novidade, e agora você pode dormir com mais dados de como a humanidade é ruim. Talvez até tenha passado rapidamente pela sua cabeça um tímido pensamento de que o problema está devidamente guardado nos submundos da sociedade, e não há nada para fazer senão lamentar. Bom, se a necessidade de defender os direitos humanos para qualquer indivíduo que sofre alguma violação não fosse argumento suficiente, não existe tal afastamento que dê uma desculpa para esquecer o problema.

Começando pelo tráfico para fins de exploração do trabalho. Se acusar a organização produtiva atual e o consumismo desenfreado pelos nossos problemas sociais tem se tornado um clichê, é por um motivo. De fato, o padrão da economia atual, com cadeias distribuídas por todo o globo, torna difícil de identificar todas as pontas produtivas da enormidade de produtos que são consumidos diariamente. É quase certo que os produtos que compramos passaram por pelo menos uma etapa que utilizou alguma forma de exploração do trabalho. E não faltam exemplos de como isso ocorre — devo lembrar das redes varejistas de roupas que têm trabalho escravo estampado em suas peças? Enquanto não repensarmos nosso padrão de consumo, e não o realizarmos de forma consciente, o sistema produtivo continuará empregando trabalhadores explorados onde falha a fiscalização, trabalhadores esses que são supridos, em boa medida, pelo tráfico de pessoas.

Sobre a exploração sexual, precisamos superar nossos tabus e julgamentos moralistas para não cair na armadilha sexista de culpar a vítima pela situação de vulnerabilidade em que ela se encontra, e afastá-la de qualquer proteção a que poderia recorrer. É preciso deixar claro que o problema não está na prostituição em si: numa sociedade plural e democrática, todos são livres para ter sua consciência e conduzir sua vida segundo suas crenças pessoais — se uma pessoa escolhe a oferta de serviços sexuais como opção de trabalho, essa escolha cabe a ela e deve ser respeitada (bom lembrar que a prostituição não é crime no Brasil, e é inclusive reconhecida pelo Ministério do Trabalho). O que não pode ser aceito, e deve ser combatido, é a exploração sexual sobre o corpo de outrém, e é aqui que entra o tráfico de pessoas.

Quanto mais as (e os) profissionais do sexo forem marginalizadas, excluídas de um convívio normal na sociedade, mais se tornam presas fáceis da exploração sexual e vítimas de crimes relacionados. Também não é preciso dizer que, quanto mais a exploração sexual for regra no mercado do sexo, maior será a pressão pelo tráfico de pessoas para esse fim. É necessário promover uma discussão madura sobre a prostituição enquanto profissão, levantando o debate sobre sua regulamentação, para que essas profissionais possam sair da marginalidade e ver seus direitos respeitados, podendo seguir uma vida digna.

Se é verdade que o tema do tráfico de pessoas não alcança o mesmo apelo que outras pautas dos direitos humanos, mais visíveis e mais polêmicas, reservá-lo ao esquecimento é o pior que podemos fazer. Compreender o problema e entender de que forma ele se relaciona com nossas vidas é o primeiro passo para que sejam tomadas soluções efetivas. Aproveitemos a oportunidade da Campanha Azul para se informar, participar das discussões, e ajudar a difundir essa causa!

Autor: Luiz Pecora