É com um largo sorriso no rosto que Charly atravessa os corredores das salas de aula do Abraço Cultural. Com tanta alegria em uma simples segunda-feira de manhã, são poucos aqueles que acreditariam que o professor não é brasileiro. Hoje, após nove anos no Rio de Janeiro, traz consigo a ginga carioca, um sotaque que mistura unicamente o português e francês, além da saudade de Kinchasa, capital da República Democrática do Congo, também sua cidade natal.
“Na verdade, não escolhi o Brasil. Ele me escolheu”, relata Charly Kongo sobre a mudança repentina em sua vida, após a repressão política que sofreu em seu país. A rotina que antes conhecia como enfermeiro virou ao avesso com sua liberdade de expressão censurada, após ter protestado nas manifestações, em 2009. Foi assim que, aos 28 anos, procurou refúgio brasileiro.
Embora a capital que vivia não tenha sido atacada diretamente, os conflitos no Congo geram, há décadas, consequências sobre a população. Além das operações militares constantes, ainda persistem casos de violência que geram instabilidade e põem em risco a vida de milhares, incluindo mulheres vítimas de abuso sexual, utilizado como arma de guerra. Somado a esses conflitos armados, as epidemias, como a AIDS, ainda hoje, alastram-se permitindo o acesso ao tratamento antirretroviral (ARV) de poucos. O congolês, antes de atravessar pela primeira vez o oceano, dedicava-se ao tratamento de crianças vítimas da doença, não só pacientes HIV positivo como seus familiares.
Mesmo com saudades da família que, em parte, ainda vive no Congo, conta que a recepção do Brasil foi calorosa e recebeu o suporte que buscava. A Cáritas é uma organização internacional da Igreja Católica que atua com a defesa dos direitos humanos, desenvolvendo projetos sustentáveis como o Centro de Acolhida a Refugiados. Os objetivos são além do acolhimento, a proteção legal e integração, fornecendo os direitos básicos aos quais à população em estado de refúgio fora negada. Seu empenho foi tanto que, hoje, com as suas roupas coloridas e o boné de aba reta, trabalha integralmente no projeto social auxiliando outros refugiados, em busca de proteção.
A grande barreira foi a linguística, logo, no desembarque. Dizem que francês, idioma oficial do Congo, é a língua do amor, mas foi com em um curso de português na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que conheceu sua esposa, também brasileira. O casal possui um filho e brinca, “ele ainda não fala francês, mas um dia vai!”.
Embora o primeiro contato tenha sido árduo, com a comunicação impraticável, há 2 anos, Charly ensina francês no Abraço Cultural, curso de idiomas no qual os professores são refugiados. “Há uma troca. Com as aulas, consigo transmitir um pouco da cultura do meu país, libertada dos estereótipos africanos”, descreve. Além disso, o curso também proporciona aulas culturais periódicas, como aulas de dança, mesas sobre questões culturais diversas e gastronomia típica.
Aulas tradicionais carregam conteúdo, mas a alma das lições transmitidas por Charly não está na grammaire, e sim dans la culture, embora ele corrija sempre a boa dicção e pronúncia. As pequenas diferenças estão nas atividades ao som de Stromae, cantor belga de ascendência ruandense que, em suas músicas, narra a história de uma África pouco conhecida. Estão também no peixe, receita típica congolesa, que traz na sexta-feira para compartilhar com os alunos, no horário de almoço. E nas pausas que faz para contar a história dos conflitos em seu país ou para apontar as formas diversas de se enumerar, na França e no Congo.
“Infelizmente, no Brasil, os negros são subestimados e isto faz parte da cultura. Quando se é um refugiado, muitos te enxergam como sem cultura, ignorante ou até violento”, relata Charly.
Seu pensamento assemelha-se à crítica a democracia racial, na qual exprime que a própria construção histórica permitiu que, hoje, a opressão racial se tornasse velada, contribuindo para a imagem de um Brasil miscigenado com samba, praia e festa. A realidade é outra. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país, fruto da violência nas ruas e alienação do conflito racial atual.
Não é atoa que dizem que a educação transforma e o professor, hoje, constrói os alicerces para a quebra de preconceitos, todos os dias, a partir do primeiro Bonjour, no início da aula. Apesar da grave situação política e econômica, ele ainda acredita no futuro e tem fé no país que o acolheu: “para que a nossa vida, como refugiados, melhore, a vida dos brasileiros também precisa progredir. E é assim, indo às ruas, protestando e manifestando, como é nosso direito”.
Quer saber mais sobre o Abraço Cultural?
Confira o site do curso e página do Atados.
E fique atento! O Abraço estará com inscrições abertas, a partir de dezembro, para o curso intensivo que começa em janeiro, viu?
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