Angustiado, acordei em uma sexta-feira de férias por volta de dez horas da manhã, após um rápido cochilo de duas horas. Antes de conseguir cair no sono, havia ficado, aproximadamente, quarenta e oito horas sem dormir. O motivo era uma forte ansiedade relacionada ao vestibular: o sistema de inscrição estava fora do ar e, por esse descaso do poder público, a sonhada vaga em uma universidade federal ia por água abaixo. O desespero tomou conta de mim, afinal eram 4 anos estudando e passando por diversas dificuldades para atingir esse objetivo. Felizmente, consegui fazer minha inscrição e a felicidade tomou conta de mim. Felicidade que durou apenas duas horas.

 

Não há como esquecer o dia e o horário que a Vale cometeu um dos maiores ecocídios no Brasil. No dia 25 de janeiro, às 12h28, não houve apenas a destruição da matéria que a lama encontrava pela frente. Houve o assassinato de um ecossistema inteiro. Plantas, animais, água foram destruídos. Os minerais presentes na mãe-terra não estão mais no local em que ela os colocou. Mais de 220 vidas humanas foram massacradas e pelo menos 70 pessoas estão desaparecidas. Vidas essas que possuíam lindas histórias, inúmeros sonhos, familiares, diversos amigos, vontades únicas e o desejo inerente do ser humano: alcançar a felicidade. Como alcançar a felicidade quando segundos de uma tragédia, causada pelo próprio ser humano, é capaz de destruir tudo o que está a sua frente?

 

A primeiro momento, lembrei de quatro pessoas próximas que trabalhavam exatamente onde o rompimento ocorreu. Minha primeira reação foi tentar entrar em contato com amigos que poderiam me informar a situação delas. Nesse momento, o alívio foi enorme por saber que duas delas estavam bem. Porém, ao mesmo tempo, a angústia, o desespero, a tristeza e a insegurança me invadiram ao não conseguir ter notícias de outras duas. Não há como explicar, por meio de palavras, o sentimento que tive nesse momento. Foi uma sinestesia gigante! Imagine você sentindo felicidade, tristeza, angústia, raiva, alívio, desespero, esperança, desesperança, compaixão, depressão… imagine ver a morte passando a sua frente todos os segundos do dia. A segundo momento, tentei engolir tudo isso e fui para as proximidades da ponte de Brumadinho – único acesso que passa sobre o rio Paraopeba – buscar algo útil que eu poderia fazer.

 

Foi a partir daí que as ações começaram a se conectar. A caminho do leito do Paraopeba, uma das primeiras pessoas que me ligou foi uma amiga, muito preocupada e angustiada. Ela queria saber se tudo estava bem comigo e gostaria muito de ajudar de alguma forma. Mesmo ela estando no início de uma gravidez e passando por problemas pessoais, ela se dispôs a fazer o que estivesse ao seu alcance. E foi uma das atitudes mais lindas que aconteceu nestes trágicos dias. Se hoje estou aqui escrevendo a vocês é por que ela me deu um apoio primordial e me conectou com pessoas maravilhosas. A semente que ela plantou germinou uma árvore muito grande! Um dos galhos mais fortes dessa árvore se chama Atados. Essa amiga me conectou a outra – outro anjo que apareceu -, que criou um grupo, dia 30 de janeiro, no WhatsApp, com a seguinte mensagem: ”Mari, esse é o Gabriel. Gabriel, essa é a Mari. Gabriel, conta pra gente qual é o seu coletivo. Quais são os objetivos e demandas para esse momento? O nosso objetivo é pensar em ações concretas. E eu sou a Katherine…”. Foram com essas simples palavras que tudo começou a tomar forma. E que forma! Posteriormente, fizemos uma chamada de vídeo em que, além de nós três, participou também a Isabela, uma integrante do Atados muito simpática e que, desde então, ofereceu todo o apoio necessário. Nesse encontro, fui muito bem recebido pela Mari, pela Katty e pela Isa. Foi uma ótima reunião! A partir daí, iniciamos várias articulações que culminaram no evento maravilhoso que aconteceu em São Paulo, no dia 19 de Março.

 

Há alguns dias eu estava muito depressivo com tudo que nossa sociedade de Brumadinho estava e está passando. Vários conflitos surgiram na cidade, briga de egos, briga política. Interesses individuais começaram a ser colocados acima dos interesses do povo. Grande parte das pessoas apresentavam sintomas de Transtorno Pós-Traumático. O caos já havia se instalado na bacia do Paraopeba e as pessoas foram emergidas nele. A tragédia passou da esfera física para a esfera metafísica. O cenário de guerra estava formado. O novo despertador dos moradores de Brumadinho era o barulho dos helicópteros socorristas, que transitam pelo nosso céu até hoje. As crianças se assustavam por um simples barulho de alguém caminhando. O transporte coletivo estava paralisado, estradas estavam bloqueadas. A Vale e a prefeitura não prestavam o mínimo de apoio. Advogados e psicólogos aproveitando da situação para ganhar dinheiro. Políticos utilizando a dor para atender prováveis eleitores. A defesa civil defendendo a Vale. O governador do estado defendendo a Vale. E mesmo após tanto sofrimento, o poder executivo continua permitindo que a cidade fique à mercê da mineração. Brumadinho está sendo destruída dia após dia. A cidade está tomada pela névoa vermelha do minério. Não há investimento nas vias públicas, na saúde, na educação, no transporte coletivo, no bem-estar das pessoas. Não há, sequer, um local de lazer que as crianças possam brincar e tentar viver um ambiente que não lembre o crime cometido pela Vale. Brumadinho foi criada por pessoas que mantinham as mineradoras… e as mineradoras mataram as pessoas. Isso me fez desabar e achei melhor me afastar de todas as atividades que envolvia o crime. Eu precisava me recuperar.

 

Foi por isso que o dia 19 foi muito especial para mim. O evento no Atados me proporcionou uma energia maravilhosa, que me deu forças para regenerar e conseguir continuar na luta por mais justiça social. As pessoas que conheci, o clima da casa, o ambiente amigável foram fundamentais para que eu pudesse criar uma base e aguentar todo esse sofrimento. Apesar de eu ter tido uma passagem muito rápida, ela foi suficiente para que eu pudesse me restabelecer para vencer os desafios que a vida nos separa. Poucos dias após, o Daniel do Atados – também uma pessoa com um caráter maravilhoso – me liga e propõe uma parceria para conseguirmos mobilizar gente que queira realmente se engajar na causa do nosso povo. E essa parceria está criando um corpo muito forte!

 

Para que a gente consiga fortalecer ainda mais, precisamos da presença do maior número de voluntários possível em um evento muito especial que acontecerá dia 20 de abril às 16h na sede do Amigos de Brumadinho. Esse grupo de amigos também está se fortalecendo para que possamos oferecer o melhor para nossa região atingida. Ele surgiu nos primeiros dias da tragédia, após ficarmos inconformados com o descaso do poder público com a população. Hoje, são inúmeras as ações que fizemos para tentar trazer de volta o brilho que tínhamos no olhar, antes da tragédia acontecer. Vem se juntar a nós para conhecer melhor o que estamos propondo e fazendo para regenerar nossa terra! Te esperamos dia 20 de abril, na sede dos Amigos de Brumadinho.

 

”O rio? É doce. A Vale? Amarga. Ai, antes fosse… mais leve a carga. Quantas toneladas exportamos de ferro? Quantas lágrimas disfarçamos sem berro?” – Carlos Drummond de Andrade

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*Texto escrito por Gabriel Vilaça, representante do Atados em Brumadinho e morador da cidade.