Atados convida: Mauro Ventura para contar a história de José Romildo e de sua ACA, ONG que leva educação e cultura a mais de 300 alunos, de 4 a 65 anos, na Zona Norte do Rio.
José Romildo dos Santos queria treinar kung fu. Mas, em Camanducaia, interior de Minas, onde a família morava, não havia quem ensinasse a luta de seu ídolo, Bruce Lee. O jeito foi fazer caratê. Ele seguia com o pai para a aula quando passou em frente a um clube. De dentro, ouviu um som inédito aos ouvidos daquele adolescente de 14 anos.
– O som do berimbau bateu muito forte na minha cabeça. Fiquei maluco. Entrei, olhei a capoeira, me encantei com a ginga e com o respeito dos alunos pelo mestre, e falei: “Pai, é isso que quero fazer.”
Era 1987. Começava a nascer ali Mestre Jagunço. Hoje, mais de 30 anos depois, a capoeira continua sendo essencial em sua vida. Aliás, não só dele. Jagunço fundou, com a mulher, Janaína Bemvindo, e o professor Canela, a ONG Associação de Cultura e Arte (ACA) – Casa de Bambas, que beneficia mais de 300 alunos, de 4 a 65 anos, na sede, na Cidade Alta, e em sete núcleos: dois em Caxias, um na Pavuna, um em Belford Roxo, um em Realengo e dois em Cordovil. Há aulas de capoeira, dança afro e dança folclórica. E o curso Reciclasom, de confecção de instrumentos recicláveis.
– A ideia é que os alunos se sustentem por meio da arte. Eles geram renda a partir do lixo. Com garrafas PET, tubos de PVC e outros materiais, constroem todo tipo de instrumento, como atabaque, tambor, cavaquinho, reco-reco, pandeiro, tamborim, repique.
Com a pandemia, ele interrompeu as aulas presenciais e focou na entrega de cestas básicas, roupas e dinheiro. Ajudou dez grupos de capoeira e moradores de bairros como Brás de Pina, Caju, Campo Grande, Irajá, Rocha Miranda, Abolição, Barreira do Vasco, Vila Kennedy, Parada de Lucas e Jardim América.
– Até gente de classe média de Copacabana veio buscar. Outro dia juntei alimentos e levei a um amigo em Caxias que não tinha comida para o filho. Também apareceu um senhor de seus 70 anos, com filhos de 22 e 28 anos. Demos uma cesta, ele começou a pular e gritar: “Obrigado! Eu só vim me escrever e já consegui alimento!”
Outra beneficiada foi a vigilante Adriana Jesus de Almeida, de 46 anos. A ajuda veio no momento certo. Desempregada, mora com um filho de 18 e um neto de 13 em Santa Cruz. A filha mais velha vive perto, com o marido. Sua vida estava de “cabeça para baixo”. Recém-operada, havia sido despejada por não conseguir pagar o aluguel de R$ 250. Sem ter onde guardar seus objetos, doou-os. Ela está conseguindo construir uma casa e, além das cestas, Jagunço deu lençol, roupa de cama, toalha, panela de pressão, botijão de gás, jogo de sofá, microondas.
– Eu sou apaixonada por ele e por sua família – diz.
Já foram distribuídas 16 mil cestas, doadas pelo União Rio e pelo Galo do Amanhã. Outra ajuda fundamental veio do Atados.
– O Atados abriu portas gigantescas. Minha mulher fez o cadastro lá e começaram a chegar os voluntários.
São oito: três na área de criação, quatro na elaboração de textos e um na captação. Entre eles está Rafaele dos Santos, de 25 anos, formada em design de moda:
– Eu sou muito ansiosa, e o problema piorou na pandemia. Eu estava quase pirando, até que vi um anúncio do Atados e me inscrevi para fazer o plano de marketing de alguma ONG.
Identificou-se de cara com a ACA. Começou em junho de 2020 e não parou mais. Hoje auxilia no planejamento da comunicação e na criação de conteúdo para mídias.
– Aprendo muito, é uma troca ótima, porque esse trabalho tem me ajudado muito na pandemia, por causa da minha ansiedade.
Por enquanto, Jagunço tem atendido poucos alunos de forma presencial.
– Uma menina de 9 anos me ligou chorando: “Estou com ansiedade.” Achei necessário dar suporte nesses casos emergenciais.
Ele nasceu em Cajamar (SP). Os pais, sergipanos, haviam se mudado para lá nos anos 70. Foram cortar eucalipto. Era uma rotina dura. Desde cedo os cinco filhos iam para a roça ajudar no trabalho. O pai sempre teve preocupação social. Levava andarilhos até sua casa, dava comida, banho, roupas. Quando fazia moqueca, chamava os pobres, tirava os móveis da sala, botava uma esteira no chão e todo mundo dividia os pratos.
– Temos origens indígenas. Somos do povo xocó, hoje quase extinto. Meu pai dizia que quando você come junto você cria vínculo e diz para o outro que somos iguais.
Romildo mudou-se para o Rio aos 19 anos. Conseguiu emprego numa oficina de refrigeração. Mas, dois meses depois, foi demitido. Arrumou trabalho como pedreiro numa escola até que, um dia, faltou uma professora.
– Estava a maior algazarra na turma. Comecei a construir um instrumento com cabo de vassoura. A sala silenciou. A diretora ficou com lágrimas nos olhos e disse: “Você está na profissão errada, tem que trabalhar com educação e social.” Virei educador.
Ele também passou a dar aulas de capoeira numa ONG. Lá, aprendeu dança afro e balé clássico, e montou o espetáculo “Coisas nossas” com o coreógrafo Firmino Pitanga. A certa altura, pediu aumento. Ouviu que não podia porque era semianalfabeto – tinha 27 anos e só até a 5ª série. Matriculou-se na escola, terminou o Ensino Fundamental e o Médio, fez Enem e passou para engenharia civil. Após dois anos na universidade, preparou um plano de carreira, levou para a ONG e disse:
– Agora vocês estão falando com um estudante de engenharia civil – diz ele, que largou após o 5º período para se concentrar na área social.
O preconceito fez Romildo idealizar um projeto social de forma que os beneficiados nunca tivessem que ouvir o que ouviu. Nascia ali a ACA. Jagunço leva seu trabalho para vários cantos. Em dezembro, deu aulas de capoeira no pátio de uma ocupação na Praça Tiradentes. Também deu aulas de capoeira e dança afro para rapazes e moças que cumpriam medidas socioeducativas no Degase. Reuniu jovens das três facções rivais numa apresentação na Uerj para autoridades.
– A arte rompe barreiras e agrega todo mundo.
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Atados convida:
Mauro Ventura
Jornalista e escritor
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